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A sucessão na união estável
Decisão TJRS

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu que não se pode negar que tanto à família de direito, ou formalmente constituída, como também àquela que se constituiu por simples fato, há que se outorgar a mesma proteção legal, em observância ao princípio da eqüidade, assegurando-se igualdade de tratamento entre cônjuge e companheiro, inclusive no plano sucessório. Ademais, a própria Constituição Federal não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros, tampouco o faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do novo Código Civil, não podendo, assim, prevalecer a interpretação literal do artigo em questão, sob pena de se incorrer na odiosa diferenciação, deixando ao desamparo a família constituída pela união estável, e conferindo proteção legal privilegiada à família constituída de acordo com as formalidades da lei. O acórdão da relatadora, desembargadora Maria Berenice Dias ficou assim redigido:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. SUCESSÃO DA COMPANHEIRA. ABERTURA DA SUCESSÃO OCORRIDA SOB A ÉGIDE DO NOVO CÓDIGO CIVIL. APLICABILIDADE DA NOVA LEI, NOS TERMOS DO ARTIGO 1.787. HABILITAÇÃO EM AUTOS DE IRMÃO DA FALECIDA. CASO CONCRETO, EM QUE MERECE AFASTADA A SUCESSÃO DO IRMÃO, NÃO INCIDINDO A REGRA PREVISTA NO 1.790, III, DO CCB, QUE CONFERE TRATAMENTO DIFERENCIADO ENTRE COMPANHEIRO E CÔNJUGE. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA EQUIDADE. Não se pode negar que tanto à família de direito, ou formalmente constituída, como também àquela que se constituiu por simples fato, há que se outorgar a mesma proteção legal, em observância ao princípio da eqüidade, assegurando-se igualdade de tratamento entre cônjuge e companheiro, inclusive no plano sucessório. Ademais, a própria Constituição Federal não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros, tampouco o faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do novo Código Civil, não podendo, assim, prevalecer a interpretação literal do artigo em questão, sob pena de se incorrer na odiosa diferenciação, deixando ao desamparo a família constituída pela união estável, e conferindo proteção legal privilegiada à família constituída de acordo com as formalidades da lei.

Preliminar não conhecida e recurso provido.

Agravo de Instrumento Sétima Câmara Cível

Nº 70020389284 Comarca de Uruguaiana

V. L. G. AGRAVANTE

ESPOLIO DE C. M. F. G. AGRAVANTE

E. F. G. AGRAVADO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em, não conhecer da preliminar invocada nas contra-razões e dar provimento ao recurso.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des.ª Maria Berenice Dias (Presidente) e Des. Luiz Felipe Brasil Santos.

Porto Alegre, 12 de setembro de 2007.

DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL,

Relator.

RELATÓRIO

Des. Ricardo Raupp Ruschel (RELATOR)

Trata-se de agravo de instrumento interposto por V. L. G. contra a decisão (fl. 16 e verso) que, nos autos do inventário dos bens deixados por C. M. F. G., deferiu a habilitação do irmão da falecida.

Sustenta que: a) o agravado, irmão da falecida, não é herdeiro necessário, conforme o disposto do art. 1.845 do CC, portanto, não goza dos benefícios concedidos pelo art. 1.846 do CC; b) ante a inexistência de ascendentes ou descendentes, a sucessão será deferida por inteiro ao cônjuge sobrevivente, nos termos do art. 1.838 do CC; c) o agravante e a falecida vivia em união estável desde meados de 1995, quando o agravante vendeu apartamento de sua propriedade a fim de construir uma casa no terreno da companheira; d) o agravado sempre reconheceu a união estável entre sua irmã e o agravante; e) mesmo que C. tenha falecido em fevereiro de 2005, não são aplicáveis ao caso as regras previstas no art. 1.790 do novo Código civil, que entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, já que a união estável foi constituída cerca de 10 anos antes do óbito, em meados de 1995; f) apenas o companheiro tem direito sucessório no caso, não havendo razão para se cogitar o direito sucessório do agravado, ou dos demais irmãos da falecida, eis que apenas parentes colaterais da de cujus; g) as regras sucessórias previstas para a sucessão entre companheiros no Novo Código Civil são inconstitucionais, vez que a nova lei rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, violando os princípios fundamentais da igualdade e dignidade. Requer seja declarada a inconstitucionalidade do inciso III do art. 1.790 do Código Civil de 2002; e seja reformada a decisão agravada, para indeferir a habilitação do irmão da falecida, afastando-o da sucessão, bem como a todos os demais colaterais que venham a requerer habilitação.

Às fls. 54, o recurso foi recebido no seu efeito meramente devolutivo, pelo eminente desembargador plantonista.

Foram apresentadas contra-razões, nas fls. 56-60, em que o agravado suscita, preliminarmente, que o único bem a inventariar, trata-se de bem incomunicável. No mérito, impugna as razões do recurso, pedindo pelo desprovimento do mesmo.

Vieram-me os autos conclusos para julgamento.

É o relatório.

VOTOS

Des. Ricardo Raupp Ruschel (RELATOR)

A argüição preliminar invocada nas contra-razões não merece conhecida, vez que questão não submetida ao Juízo de 1º grau e nem examinada na decisão atacada.

Ademais, é indiferente à solução do conflito vertido nestes autos a questão atinente ao momento da aquisição do bem que compõe a integridade do patrimônio da autora da herança – se antes ou depois de constituída a união estável -, visto que a discussão diz respeito ao direito ou não do companheiro ou da companheira de herdar a totalidade da herança quando inexistente descendentes ou ascendentes.

Portanto, não conheço da prefacial suscitada.

Na questão de fundo, o recurso merece prosperar.

O agravante traz à baila questão respeitante ao direito intertemporal, em que busca ver reconhecida a incidência de norma anterior ao Novo Código Civil que assegurava ao companheiro direito na totalidade da herança.

Com efeito, dispõe expressamente o artigo 1.787 do atual Código Civil que a sucessão será regulada pela lei vigente ao tempo da sua abertura.

Na espécie, incontroverso que a inventariada faleceu em 1º.2.05. Assim, resta claro que a abertura da sucessão se deu sob a égide da nova legislação civil. Registre-se que tal disposição legal busca justamente regular uma situação jurídica que somente passa a existir após a morte do transmitente. Até então, o que existe em relação aos prováveis herdeiros é apenas uma expectativa de direito.

Entretanto, não há que se falar na espécie em retroatividade, até porque inexistente na hipótese, uma vez que o fato jurídico do qual emanam os direitos aqui buscados, ou seja, o falecimento da inventariada, se deu somente quando vigente o Novo Código Civil.

Desta forma, há que se examinar a situação jurídica das partes contendoras sob a ótica e os ditames do referido diploma legal, independentemente das razões que levaram ao tratamento diferenciado entre cônjuge e companheira.

Todavia, no que respeita à aplicação no caso concreto da regra prevista no artigo 1.790, III, do Código Civil em vigor, há que se reconhecer que o tema exige reflexão, à vista do que dispõe a regra contida no artigo 1.829, III, da mesma Lei.

Vejamos o teor das mencionadas disposições legais:

“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.”

“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.”

Pelo que se infere dos aludidos dispositivos, enquanto o cônjuge foi elevado à categoria de herdeiro necessário, o companheiro, apesar de toda evolução do instituto da união estável, não recebeu o mesmo tratamento, tendo sido a sua sucessão regulada de modo diverso, no capítulo das disposições gerais.

No caso em exame, o ponto nodal da discussão diz com o direito ou não de o recorrente, na condição de companheiro, herdar a totalidade da herança de alguém que não deixou descendentes ou ascendentes. Se a ele se confere o status de cônjuge, ou se se lhe impõe as disposições do Código Civil de 2002, onde restou estabelecida, mediante interpretação restritivamente literal, distinção entre cônjuge e companheiro, conferindo àquele privilégio sucessório em relação a este.

O tema, que já é objeto de acirrada discussão jurisprudencial, merece exame, não só sob o prisma da concretude do fato, mas igualmente, e, em especial, diante da proteção que o sistema jurídico pátrio outorga à família, quer seja ela família de fato, ou de direito.

Desta forma, à luz desse ponto de partida, ou seja, do princípio de igualdade, não se pode negar que tanto à família de direito, ou formalmente constituída, como também àquela que se constituiu por simples fato, há que se outorgar a mesma proteção legal, em observância ao princípio da eqüidade, assegurando-se igualdade de tratamento entre cônjuge e companheiro, inclusive no plano sucessório. “’O equitativo’, explica Aristóteles, ‘embora sendo justo, não é o justo de acordo com a lei, mas um corretivo da justiça legal’, o qual permite adaptar a generalidade da lei à complexidade cambiante das circunstâncias e à irredutível singularidade das situações concretas.” (In Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, de André Comte-Sponville, Editora Martins Fontes, 2004, págs. 93 e 94).

Negar provimento ao recurso, no caso concreto, em que o direito do recorrente tem por base situação de fato não impugnada pela parte recorrida, ou seja, a união estável com início em 1.995, importa, ao fim e ao cabo, em conferir odioso tratamento desigual entre cônjuge e companheiro, deixando ao desamparo a família constituída pela união estável, e conferindo proteção legal privilegiada à família constituída de acordo com as formalidades da lei.

Não se pode perder de vista, ademais, que a própria Constituição Federal, ao dispor no § 3º do artigo 226 que, para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento, não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros. Tampouco o faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do novo Código Civil (Lei n.º 8.971/94 e Lei n.º 9.278/96). Não é aceitável, assim, que prevaleça a interpretação literal do artigo 1.790 do CC 2002, cuja sucessão do companheiro na totalidade dos bens é relegada à remotíssima hipótese de, na falta de descendentes e ascendentes, inexistirem, também, “parentes sucessíveis”, o que implicaria em verdadeiro retrocesso social frente à evolução doutrinária e jurisprudencial do instituto da união estável havida até então.

A matéria em discussão ganhou relevância a ponto de haver Projeto de Lei em tramitação no Congresso Nacional, propondo a revogação do artigo 1.790 e a alteração do artigo 1.829 do CC 2002 (Projeto de Lei n.º 4.944/2005 – de autoria do deputado Antônio Carlos Biscaia), fruto de estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), afigurando-se oportuna a transcrição da justificativa apresentada pelo autor do Projeto (In O Cônjuge e o Convivente no Direito das Sucessões, de Carlos Eduardo de Castro Palermo, Editora Juarez de Oliveira, 2007, págs. 90 e 91), que vem a reforçar os argumentos antes expostos:

“Deve-se abolir qualquer regra que corra em sentido contrário à equalização do cônjuge e do companheiro, conforme revolucionário comando constitucional que prescreve a ampliação do conceito de família, protegendo de forma igualitária todos os seus membros, sejam eles os próprios partícipes do casamento ou da união estável, como também os seus descendentes. A equalização preconizada produzirá a harmonização do Código Civil com os avanços doutrinários e com as conquistas jurisprudenciais correspondentes, abonando quase um século de vigoroso acesso à justiça, e de garantia da paz familiar.

Assim sendo, propugna-se pela alteração dos dispositivos nos quais a referida equalização não esteja presente. O caminho da alteração legislativa, nesses casos, se mostra certamente imprescindível, por restar indene de dúvida que a eventual solução hermenêutica não se mostraria suficiente para a produção de uma justiça harmoniosa e coerente, senão depois de muito tempo, com a consolidação de futuro entendimento sumulado, o que deixaria o indesejável rastro, por décadas quiçá, de se multiplicarem decisões desiguais para circunstâncias jurídicas iguais, no seio da família brasileira.”

Cabe consignar, outrossim, que primar pela aplicação literal da regra prevista no artigo 1.790, III, da nova Lei Civil, além de afrontar o princípio da eqüidade, viola também o princípio da vedação do enriquecimento sem causa, o que, na hipótese dos autos, ocorreria por parte do irmão da autora da herança em detrimento do companheiro supérstite, que com a falecida convivia desde o ano de 1.995.

Portanto, diante das razões acima expendidas, dou provimento ao recurso para o fim de afastar o agravado da sucessão dos bens deixados pela de cujus.

Do exposto, não conheço da preliminar invocada nas contra-razões e dou provimento ao recurso.

Des.ª Maria Berenice Dias (PRESIDENTE) – De acordo.

Des. Luiz Felipe Brasil Santos – De acordo.

DES.ª MARIA BERENICE DIAS – Presidente – Agravo de Instrumento nº 70020389284, Comarca de Uruguaiana: “NÃO CONHECERAM DA PRELIMINAR, E DERAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME.”

Julgador(a) de 1º Grau: ROSALIA HUYE

Fonte: TJRS

Publicação: Correio Forense