O questionamento cuja análise é objeto do presente artigo deriva da diversidade de tratamento dado ao regime da separação obrigatória de bens pelo Código Civil e pela Jurisprudência, consubstanciada na Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal – STF, que estabelece[1]: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.”
A Súmula 377 do STF não é uma Súmula Vinculante, que, na definição constante do Glossário Jurídico constante da página eletrônica do próprio STF é[2]:
Efeito Vinculante – Descrição do Verbete: Efeito vinculante é aquele pelo qual a decisão tomada pelo tribunal em determinado processo passa a valer para os demais que discutam questão idêntica. No STF, a decisão tomada em Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade ou na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental possui efeito vinculante, ou seja, deve ser aplicada a todos os casos sobre o mesmo tema. As Súmulas Vinculantes aprovadas pela Corte também conferem à decisão o efeito vinculante, devendo a Administração Pública atuar conforme o enunciado da súmula, bem como os juízes e desembargadores do país. Os demais processos de competência do STF (habeas corpus, mandado de segurança, recurso extraordinário e outros) não possuem efeito vinculante, assim a decisão tomada nesses processo só tem validade entre as partes. Entretanto, o STF pode conferir esse efeito convertendo o entendimento em Súmula Vinculante. Outro caminho é o envio de mensagem ao Senado Federal, a fim de informar o resultado do julgamento para que ele retire do ordenamento jurídico a norma tida como inconstitucional.
Apesar de não se tratar de Súmula Vinculante, a Súmula nº 377 do STF é parâmetro para todo o Judiciário e orienta a regulamentação existente nos Códigos de Normas do Extrajudicial dos Estados da Federação.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de ser aplicável a Súmula 377 do STF, mesmo após a vigência do Código Civil de 2002, de modo que, no caso de o casamento ter sido celebrado sob o regime da separação obrigatória de bens, é devida a partilha igualitária do patrimônio adquirido onerosamente na constância do casamento, com base no princípio da solidariedade e a fim de evitar a ocorrência de enriquecimento ilícito de um consorte em detrimento de outro.
Nesse sentido o Acórdão do STJ cuja ementa abaixo se reproduz (no original não há grifos ou negritos):
Processo REsp 1171820 / PR – RECURSO ESPECIAL
2009/0241311-6 – Relator(a) Ministro SIDNEI BENETI (1137) – Relator(a) p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI (1118) – Órgão JulgadorT3 – TERCEIRA TURMA – Data do Julgamento 07/12/2010 – Data da Publicação/Fonte DJe 27/04/2011 – LEXSTJ vol. 262 p. 149
Ementa
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ALIMENTOS. UNIÃO ESTÁVEL ENTRE SEXAGENÁRIOS. REGIME DE BENS APLICÁVEL. DISTINÇÃO ENTRE FRUTOS E PRODUTO.
1. Se o TJ/PR fixou os alimentos levando em consideração o binômio necessidades da alimentanda e possibilidades do alimentante, suas conclusões são infensas ao reexame do STJ nesta sede recursal.
2. O regime de bens aplicável na união estável é o da comunhão parcial, pelo qual há comunicabilidade ou meação dos bens adquiridos a título oneroso na constância da união, prescindindo-se, para tanto, da prova de que a aquisição decorreu do esforço comum de ambos os companheiros.
3. A comunicabilidade dos bens adquiridos na constância da união estável é regra e, como tal, deve prevalecer sobre as exceções, as quais merecem interpretação restritiva, devendo ser consideradas as peculiaridades de cada caso.
4. A restrição aos atos praticados por pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos representa ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.
5. Embora tenha prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que o regime aplicável na união estável entre sexagenários é o da separação obrigatória de bens, segue esse regime temperado pela Súmula 377 do STF, com a comunicação dos bens adquiridos onerosamente na constância da união, sendo presumido o esforço comum, o que equivale à aplicação do regime da comunhão parcial.
6. É salutar a distinção entre a incomunicabilidade do produto dos bens adquiridos anteriormente ao início da união, contida no § 1º do art. 5º da Lei n.º 9.278, de 1996, e a comunicabilidade dos frutos dos bens comuns ou dos particulares de cada cônjuge percebidos na constância do casamento ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão, conforme previsão do art. 1.660, V, do CC/02, correspondente ao art. 271, V, do CC/16, aplicável na espécie.
7. Se o acórdão recorrido categoriza como frutos dos bens particulares do ex-companheiro aqueles adquiridos ao longo da união estável, e não como produto de bens eventualmente adquiridos anteriormente ao início da união, opera-se a comunicação desses frutos para fins de partilha.
8. Recurso especial de G. T. N. não provido.
9. Recurso especial de M. DE L. P. S. provido.
Com a possibilidade de que os inventários sejam lavrados por meio de escritura pública, de forma extrajudicial, conforme previsão expressa da Lei nº 11.441/2007, regulamentada pela Resolução nº 35 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, a questão se tornou mais complexa, posto que o Tabelião, ao contrário do Juiz, não tem poder para determinar que seja afastada a lei para que seja aplicada a Jurisprudência do STF, ainda que sumulada.
A Secretaria do Estado da Fazenda de Minas Gerais – SEF/MG não vem aplicando a Súmula 377 do STF nos inventários extrajudiciais em que o falecido era casado sob o regime da separação obrigatória de bens, de modo que, se há atribuição de meação ao viúvo ou viúva, a SEF/MG vem tributando tal valor como se fosse uma doação dos herdeiros.
Já nos inventários judiciais, tendo em vista a sentença proferida nos autos respectivos, a Súmula 377 do STF vem sendo acolhida, de forma que a SEF/MG tem reconhecido a meação do cônjuge sobrevivente.
Neste artigo questiona-se a possibilidade de a Corregedoria-
Geral de Justiça, por meio de norma conjunta com a SEF/MG, reconhecer a possibilidade de aplicação da Súmula 377 do STF também no meio extrajudicial, para afastar tratamentos diversos em situações idênticas e evitar que haja opção pela via judicial unicamente para garantir a meação do viúvo ou viúva que havia se casado sob o regime da separação obrigatória de bens.
O REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS
Sílvio Rodrigues muito bem definiu o instituto jurídico denominado regime de bens: “Regime de bens é o estatuto que regula os interesses patrimoniais dos cônjuges durante o matrimônio.” (2008, p. 135).
Nos termos do art. 1641, do Código Civil de 2002, por razões de ordem pública, visando proteger o nubente ou terceiro, o legislador impôs a separação obrigatória de bens.
Determina o referido art. 1641:
Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;
III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
A doutrina assim explica o regime da separação obrigatória de bens:
Trata-se de um regime imposto por lei, que reduz a autonomia privada dos nubentes. Desse modo, nos seus casos, se eleito por pacto antenupcial o regime da comunhão universal, da comunhão parcial ou da participação final dos aquestos, tal pacto será nulo por infração à norma de ordem pública […] (SIMÃO e TARTUCE, 2008, p. 154)
Logo, as pessoas inseridas nas situações previstas no art. 1641 do Código Civil terão que suportar os efeitos da imposição legal do regime, já que o legislador excepcionou a regra da livre manifestação de vontade dos consortes, estabelecendo a separação compulsória de bens.
A questão sucessória é a que interessa neste artigo. No regime da separação obrigatória de bens, a inexistência de meação decorre da literal determinação do art. 1.641, no sentido de que “é obrigatório o regime da separação de bens”.
Ocorre que a jurisprudência[3], representada inclusive por julgados recentes do Superior Tribunal de Justiça – STJ, é no sentido de ser aplicável a Súmula 377 do STF, mesmo após a vigência do Código Civil de 2002, de modo que é devida a partilha igualitária do patrimônio adquirido onerosamente na constância do casamento, com base no princípio da solidariedade e a fim de evitar a ocorrência de enriquecimento ilícito de um consorte em detrimento de outro.
Cabe esclarecer que a dúvida no que tange à Súmula 377 refere-se unicamente à meação, pois a herança é objeto de regulamentação no art. 1.829 do Código Civil, que estabelece:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
Logo, no regime da separação obrigatória de bens, o cônjuge, havendo descendentes, não é herdeiro. Se concorrer com os ascendentes, é herdeiro; na hipótese de não existirem descendentes ou ascendentes, é o único herdeiro.
Mas como se soluciona o problema da meação na separação obrigatória de bens? Se o inventário tiver curso pelo meio judicial, certamente será aplicada a Súmula 377 do STF, de forma que a SEF/MG calculará o ITCD considerando a meação e deixando de fazer incidir o ITCD sobre tal parcela do patrimônio. No entanto, se o inventário se realizar por escritura pública, a SEF/MG não aplicará a Súmula 377 do STF e tributará eventual meação do viúvo ou viúva como se estivesse ocorrendo uma doação dos herdeiros em favor do cônjuge sobrevivente.
Não é possível que situações idênticas recebam tratamentos distintos unicamente em razão de o inventário correr pela via judicial ou ser resolvido pela via extrajudicial. Assim, defende-se que a Corregedoria-Geral de Justiça, por meio de norma conjunta com a SEF/MG, reconheça a possibilidade de aplicação da Súmula 377 do STF também no meio extrajudicial.
Tal interpretação normativa é possível e tem sido feita em casos semelhantes pela Administração Pública. A Procuradoria da Fazenda Nacional, por exemplo, tem uma lista contendo temas que, por estarem pacificados no STF ou no STJ, ou em ambos (quando se tratar de matéria de natureza “mista”), não devem mais ser objeto de recurso especial e/ou extraordinário[4]. Também a Procuradoria do Estado de Minas Gerais tem resoluções que dispensam recursos, como a Resolução AGE nº 311/2012, que dispensa a interposição de recursos nas ações relativas a cobrança de honorários de advogado nomeado para defender a parte beneficiária de assistência judiciária[5].
No caso de ter havido casamento sob o regime da separação obrigatória de bens, enquanto não houver tal norma conjunta da CGJ/MG e da SEF/MG, os caminhos que se apresentam para garantir a meação e a não tributação do ITCD sobre a referida parcela que cabe ao cônjuge sobrevivente são os seguintes: 1) em ação declaratória ou em mandado de segurança, solicitar provimento jurisdicional no sentido de que é aplicável a Súmula 377 do STF e de que há meação, com pedido de antecipação de tutela ou liminar, determinando à SEF/MG que observe tais parâmetros no cálculo do ITCD e autorizando o Tabelião a lavrar a escritura considerando a referida Súmula; 2) realizar o inventário judicial.
As duas alternativas acima mencionadas, no entanto, estão na contramão de tudo o que tem sido proposto pela Administração Pública e pelo próprio Poder Judiciário, posto que, na ausência de lide, a tendência tem sido a desjudicialização.
CONCLUSÃO
Conclui-se que é imprescindível a regulamentação conjunta pela CGJ/MG e pela SEF/MG da aplicabilidade da Súmula 377 do STF também para os inventários extrajudiciais, a fim de evitar procedimentos divergentes e injustos para as partes e para evitar o congestionamento do Poder Judiciário com ações totalmente desnecessárias.
BIBLIOGRAFIA
ESTADO DE MINAS GERAIS. Resolução AGE nº 311/2012. Disponível em: < http://www.age.mg.gov.br/images/stories/downloads/resolucoes/resolucao-311atexto-consolidado.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2015.
RODRIGUES, Silvio. Direito civil, volume 6: direito de família. 28 ed.; São Paulo: Saraiva, 2004.
SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito Civil 5: Direito de Família. 3 ed.; São Paulo: Método, 2008.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ. Processo REsp 1171820 / PR – RECURSO ESPECIAL 2009/0241311-6 – Relator(a) Ministro SIDNEI BENETI – Relatora para Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI – Órgão Julgador TERCEIRA TURMA – Data do Julgamento 07/12/2010 – Data da Publicação/Fonte DJe 27/04/2011 – LEXSTJ vol. 262 p. 149.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF. Súmula nº 377 – 03/04/1964 – DJ de 8/5/1964, p. 1237; DJ de 11/5/1964, p. 1253; DJ de 12/5/1964, p. 1277.
UNIÃO FEDERAL. http://www.pgfn.fazenda.gov.br/legislacao-e-normas/listas-de-dispensa-de-contestar-e-recorrer> e também em <http://www.pgfn.fazenda.gov.br/legislacao-e-normas/atos-declaratorios-arquivos/atos-declaratorios-da-pgfn>. Acesso em: 05 nov. 2014.
* Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas, e do livro Função Notarial e de Registro.
[1] STF Súmula nº 377 – 03/04/1964 – DJ de 8/5/1964, p. 1237; DJ de 11/5/1964, p. 1253; DJ de 12/5/1964, p. 1277. Regime de Separação Legal de Bens – Comunicação – Constância do Casamento: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento
[2] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=E&id=461>. Acesso em: 4 nov. 2014.
[3] A título de exemplo, reconhecendo a aplicação da Súmula 377 do STF, são relacionados os seguintes julgados: TJ-RS – Agravo de Instrumento AI 70056385123 RS (TJ-RS); TJ-RS – Agravo de Instrumento AI 70055544324 RS (TJ-RS); TJ-RS – Agravo de Instrumento AI 70046191128 RS (TJ-RS); TJ-RS – Apelação Cível AC 70055655450 RS (TJ-RS); TJ-MG – Agravo de Instrumento Cv AI 10713110024690001 MG (TJ-MG); TJ-MG – Apelação Cível AC 10024097527519001 MG (TJ-MG); TJ-MG – Agravo de Instrumento Cv AI 10024030893796007 MG (TJ-MG); TJ-RS – Apelação Cível AC 70056955396 RS (TJ-RS);TJ-RS – Apelação Cível AC 70043412626 RS (TJ-RS); TJ-RS – Apelação Cível AC 70056305162 RS (TJ-RS).
[4] Disponível em: <http://www.pgfn.fazenda.gov.br/legislacao-e-normas/listas-de-dispensa-de-contestar-e-recorrer> e também em <http://www.pgfn.fazenda.gov.br/legislacao-e-normas/atos-declaratorios-arquivos/atos-declaratorios-da-pgfn>. Acesso em: 05 nov. 2014.
[5] Disponível em: <http://www.age.mg.gov.br/images/stories/downloads/resolucoes/resolucao-311atexto-consolidado.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2015.
Fonte: Colégio Notarial do Brasil