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Julgamento dos Mandados de Segurança 26860/ 28279 e as Raízes do BR
Artigo Andecc

O plenário do Supremo Tribunal Federal retoma a discussão sobre a necessidade de concurso público para o exercício das atividades notarial e registral na próxima quarta-feira (26). Confira o artigo da Andecc sobre o assunto:


O tipo primitivo de família patriarcal, que imperou no Brasil desde os primórdios da colonização, alimentou o desenvolvimento de uma mentalidade pouco afeita a virtudes características de uma sociedade livre e igualitária. Valores como a concorrência entre os cidadãos, o espírito de iniciativa pessoal e o respeito a instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, não foram bem compreendidos pelos detentores de posições públicas de responsabilidade. E assim edificou-se uma mentalidade pouco atenta à distinção fundamental entre os domínios do público e do privado. Foi essa a lição de Sergio Buarque de Holanda ao descrever o que chamou “crise de adaptação do indivíduo ao mecanismo social” em obra clássica do ensaísmo brasileiro, cuja primeira edição saiu no longínquo ano de 1936.[1]

Nesta quarta-feira, dia 26 de março de 2014, teremos uma importante oportunidade para revisitarmos essas raízes da formação do pensamento brasileiro. O plenário do Supremo Tribunal Federal retomará o julgamento dos mandados de segurança 26860/ 28279, em que se discute a necessidade de concurso público para o exercício das atividades notarial e registral. A qualquer primeiranista do curso de direito pode parecer uma questão sem controvérsia e até certo ponto pacífica, pois a Constituição Federal determina que o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses (art. 236, § 3°). Na prática, porém, não é assim que ocorre.

Ancorados no princípio da segurança jurídica, os notários e registradores que receberam a delegação em caráter provisório após a promulgação da Constituição de 1988 pleiteiam a permanência no exercício da função pública, mesmo não tendo prestado concurso público. Em sua maioria são herdeiros de delegatários que receberam a outorga conforme o sistema vigorante nas Constituições pretéritas, que prestigiava os laços de amizade e apadrinhamento na seleção dos notários e registradores. Como apontou a Ministra Ellen Gracie em seu voto na relatoria do MS 28.279/DF, “imbuídos de espírito genuinamente republicano, nossos Constituintes romperam com a tradição político feudal de atribuições de titulações de cartórios”. De fato, o método de provimento não obedecia a critérios técnico-jurídicos, atendendo apenas às vontades particulares, o que permitiu o desenvolvimento de “uma espécie de classe aristocrático-notarial”, “algo parecido com as extintas concessões de baronato”.[2] Nestas figuras mencionadas pela relatora podemos identificar manifestações em pleno século XXI daquilo que Sérgio Buarque de Holanda chamou de tipo primitivo de família patriarcal.

A insistência e perseverança com que lutam e acreditam no seu direito adquirido ao exercício da função pública encontra explicação em fatores psicológicos, que impedem a apreensão por suas mentes dos argumentos de índole jurídico-constitucional. Muitos deles brincaram com suas bonecas e carrinhos nos cartórios de seus pais e avôs, que eram vistos como os “donos do cartório”. Muitas vezes suas babás o levaram até serventia para dar um abraço no papai, no vovô e no titio. Todos aqueles livros, mesas, cadeiras e funcionários formaram desde muito cedo um universo simbólico particular, que ficou gravado de forma indelével em pensamento como propriedade da família. Algo até certo ponto compreensível. Anos mais tarde, as lições do curso de direito não iriam desfazer todo esse imaginário infantil. O aprendizado do art. 236 surtiu o efeito contrário ao imaginado. Não se amedrontaram tampouco recearam a perda da herança familiar. A partir de então foram tomados por um novo ânimo, um impulso criativo verdadeiramente original, algo sem precedentes na história jurídica brasileira: passaram a desenvolver as mais variadas teses jurídicas para legitimar a permanência no cartório. Com os emolumentos, contrataram as maiores bancas de advogados do país, os grandes medalhões da República, para fazer valer perante o Poder Público brasileiro essas novas e originais teorias.

Uma dessas arrojadas teses será testada no Supremo Tribunal Federal nesta quarta-feira. Fatos e episódios recentes da sofrida e problemática trajetória dos concursos de cartório no país estão a indicar que a Corte Suprema será o palco do embate final entre duas forças que se chocam no âmago da sociedade brasileira. Como a questão já está solucionada desde 1988, quando o constituinte determinou a exigência de concurso público de provas e títulos para a outorga da delegação, os argumentos jurídico-constitucionais aparecem neste cenário como meros ornamentos decorativos empregados pelos participantes de um ato público, que pode ser interpretado como o encontro decisivo entre a expressão mais acabada do tipo arcaico e primitivo de família patriarcal existente em nosso meio com as imposições de uma ordem social que prestigia o mérito, a qualificação pessoal e a concorrência entre os cidadãos.

Por exigência do Conselho Nacional de Justiça, que tem atuado como um salutar poder moderador do Judiciário brasileiro, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás marcou para o próximo dia 02 de abril de 2014 a sessão de escolha das delegações para as atividades notariais e registrais do concurso realizado no ano de 2008. Após longo período de suspensão do concurso, devido a um mandado de segurança impetrado no Supremo Tribunal Federal por candidatos descontentes com a pontuação dos títulos, os 191 (cento e noventa e um) aprovados na modalidade ingresso terão a oportunidade de receber a delegação e iniciar o exercício da função pública. Além das brigas internas entre os candidatos, a demora no término do concurso explica-se também pela combativa atuação da ANOREG/GO (Associação dos Notários e Registradores do Brasil), que, na companhia da seccional do Paraná, tem se destacado no cenário nacional pela defesa dos supostos direitos dos que receberam a delegação em caráter provisório, sem concurso.

Em suas reuniões, foi gestada a polêmica PEC 471 de 2005, proposta de emenda constitucional do deputado goiano João Campos que almeja “efetivar os atuais responsáveis e substitutos pelos serviços notariais, investidos na forma da lei”. No engenhoso arsenal de teses articuladas pelos interinos de cartórios, esta é a única que reconhece a existência da previsão constitucional de concurso público prevista pelo parágrafo terceiro do art. 236 da Constituição Federal. Mantém-se a exigência, ressalvando na parte final do parágrafo “a situação dos atuais responsáveis e substitutos, investidos na forma da Lei, aos quais será outorgada a delegação de que trata o caput deste artigo”. Na justificativa da proposta, o deputado esclarece que a demora pelos Tribunais na realização dos concursos estaria consolidando no aspecto administrativo situações que deveriam ser temporárias. Assim, ao mesmo tempo em que reconhece o caráter interino e provisório da delegação, argumenta que sua proposição viria a solucionar tal problema, conferindo amparo legal definitivo a tais situações. Neste raciocínio já é possível identificar as idéias do fato consumado e da segurança jurídica, que serão desenvolvidas à exaustão nas teses a serem julgadas nesta quarta-feira pelo Supremo Tribunal Federal. Ainda a justificar o projeto de emenda, acrescenta o deputado:

Por isso, não é justo, no caso de vacância, deixar essas pessoas experimentadas, que estão há anos na qualidade de responsáveis pelas serventias, que investiram uma vida e recursos próprios nas mesmas prestando relevante trabalho público e social, ao desamparo. Ao revés, justifica-se, todavia, resguardá-los.[3]

Ao Ministro Gilmar Ferreira Mendes pareceu que a proposta equivaleria a uma “gambiarra jurídica”.

A tese foi discutida algumas vezes no plenário da Câmara dos Deputados, sendo submetida à votação numa oportunidade em que angariou a maioria dos votos dos representantes da nação, sem conseguir o quórum constitucional qualificado de três quintos. Todo final de ano o sistema de acompanhamento legislativo aponta uma movimentação da proposta de emenda, o que também se deu após a designação da audiência de escolha das serventias do concurso de Goiás. Esta mesma designação parece explicar o interesse dos advogados dos interinos na retomada do julgamento dos MS 26860 e 28279, que eles em mais de uma ocasião intervieram para que fossem retirados da pauta de julgamento.

Na sessão de julgamento do MS 28.279/DF, realizada no dia 16 de dezembro de 2010, o caso concreto referia-se à desconstituição pelo Conselho Nacional de Justiça do Decreto Judiciário 3/1994 do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que nomeara sem concurso o impetrante para o exercício na serventia distrital de Cruzeiro do Sul. A tese jurídica esgrimida baseia-se na decadência administrativa prevista no art. 54 da lei 9784/99: “o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”. Da tribuna falou o patrono do impetrante, o Ministro aposentado Carlos Velloso, com autoridade de quem dedicou uma longa vida à magistratura, inclusive naquele Tribunal. Partindo do princípio da segurança jurídica, dedicou a maior parte de sua fala à doutrina da anulabilidade do ato inconstitucional, mencionando muitos autores e decisões judiciais. Hans Kelsen, o RE 79.343 de Leitão de Abreu, oCorpus Iuris Secundum, Linkletter v Walker, Miguel Reale e Almiro do Couto e Silva, a quem mais adiante dedicaremos especial atenção. Todas essas citações são meros ornamentos, adornos bacharelescos que buscam pelo seu apelo sugestivo captar a atenção e seduzir os participantes do debate. Nenhuma delas resolve o caso do impetrante.

Uma breve explanação do famoso precedente Linkletter v Walker ilustra sua impertinência ao caso analisado. O pleito de Linkletter baseava-se na mudança da interpretação constitucional promovida pela Suprema Corte em Mapp v Ohio. A partir deste julgamento em 1961, estendeu-se para as Cortes estaduais a proibição do uso de provas obtidas por meios ilegais, o que já vigorava para as Cortes federais. A nova decisão poderia aplicar-se ao caso de Linkletter, cuja condenação proferida pela Corte de Louisiana em 1959 se fundara em busca e apreensão realizada sem autorização judicial. A Suprema Corte negou o seu pedido, recusando a aplicação retroativa da nova interpretação aos casos que tiveram o julgamento final antes da decisão proferida em Mapp v Ohio. O que isso tem a ver com o caso do delegatário de Cruzeiro do Sul? Nada. Em nenhum momento, é possível identificar uma mudança do texto constitucional ou de sua interpretação pelo Supremo Tribunal Federal. Como demonstrou a Ministra Elllen Gracie, a jurisprudência pacífica desde 1988 é pela aplicação do art. 236, §3°, da Constituição da República. Na verdade, o patrono dos interinos quis falar de segurança jurídica e acabou se embaralhando com os seus adornos de erudição.

Na sessão de julgamento do MS 26860, no dia 21 de março de 2012, o Plenário do Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento de outro caso em que o Conselho Nacional de Justiça desconstituíra outra nomeação para serventia posterior a 1988. Pelas falas dos tribunos, percebe-se uma mudança de estratégia. Não mais aparecem Leitão de Abreu, o Corpus Iuris Secundum e Linkletter v Walker. Todos os três advogados concentram-se no princípio da segurança jurídica, repetindo-o inúmeras vezes, como se fosse um mantra, de modo a fazer crer que é o único princípio constitucional existente. Como é natural, reaparece a lição de Almiro do Couto Silva sobre o referido princípio, merecidamente reconhecido como clássico do direito brasileiro. Pelas discussões já iniciadas pelos Ministros, parece que a tônica do debate será a interpretação do artigo “O Princípio da Segurança Jurídica (proteção à confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus próprios Atos”.[4]

Após as sustentações orais, o Ministro Luiz Fux seguiu o caminho aberto pela Ministra Ellen Gracie, avançando em determinados aspectos, sobretudo ao insistir que nunca o Supremo Tribunal Federal negou a força normativa do art. 236, §3°, da Constituição da República, sempre reiterando sua plena aplicabilidade desde 1988. Assim, não se poderia falar em expectativa legítima nem em boa-fé dos que receberam a outorga da delegação mediante ato precário do Poder Público. Reconhecendo o brilhantismo e a riqueza de argumentos do voto de relatoria da Ministra Ellen Gracie no MS 28.279/DF, o Ministro Fux, com toda a sua bagagem acadêmica de Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, fez questão de lê-lo, integrando-o ao seu voto. Suas palavras de prevalência dos princípios republicanos da igualdade, da moralidade e da impessoalidade nos fazem crer que, naquele momento, a primeira mulher a exercer a magistratura no Supremo Tribunal Federal já tinha certeza de sua aposentadoria e pretendia deixar registrado um de seus mais belos votos, talvez o mais belo de todos, legando para as gerações vindouras a sua mensagem de respeito à coisa pública e da distinção entre os domínios público e privado. Equivocou-se, porém. As discussões iniciadas após o voto do Ministro Fux sugerem que seu voto será anulado. O discurso republicano em defesa da coisa pública foi vazado em termos muito duros, verdadeiramente agressivos, o que desagradou profundamente os representantes do tipo primitivo de família patriarcal. Mal acabada a sua leitura, já elucubravam uma maneira de apagá-lo dos registros judiciários: era uma verdadeira ameaça. A aposentadoria da Ministra acenou com essa possibilidade.

Experimentado, conhecedor de todos os meandros jurídicos, ciente das fraquezas humanas, sobretudo a dos magistrados, o advogado Carlos Velloso apresentou embargos declaratórios a um voto de rara clareza, coerência e completude. E a sucessora Rosa Weber os recebeu com efeitos infringentes, o que gerará o julgamento conjunto dos dois mandados de segurança nesta quarta-feira. E mais: apelando para o regionalismo gaúcho, o patrono dos impetrantes apresentou-lhe a sua distorcida interpretação do artigo de Almiro do Couto e Silva. Pelo que se viu da última sessão, parece que a Ministra tomou tal versão por verdade. Mesmo tendo o Ministro Fux frisado que, segundo o magistério do festejado administrativista, não existe boa-fé nem expectativa legítima contrárias à legalidade constitucional, a revisora insistiu que os Decretos Judiciários que outorgaram a delegação revestiriam de boa-fé o exercício da função pública, coincidindo com entendimento que fora esposado com raro ímpeto pelo Ministro Marco Aurélio na sessão anterior.

Naquela ocasião, o magistrado carioca articulou uma curiosa relação entre a perda da delegação do interino com regimes de caráter fascista: “Não reconheço, presente o Direito posto, essa supremacia, que, a meu ver, acabaria por beirar o campo relativo ao fascismo; tudo podendo o Estado a qualquer tempo, não se cogitando, portanto, da segurança jurídica”.[5] A impressão que nos dá é que talvez lhe falte um certo conhecimento das atrocidades praticadas pelas tropas de Benito Mussolini na conquista da Etiópia, do sofrimento deste povo perante um regime verdadeiramente fascista, que em nada se assemelha com a desconstituição de um ato eivado de inconstitucionalidade pelo Conselho Nacional de Justiça.

Todo esse discurso de exaltação de atos infralegais contrários à Constituição, de tutela de expectativas criadas por atos nulos, acaba por desconstruir a própria noção piramidal do ordenamento jurídico concebida por Hans Kelsen, teórico do direito lembrado com tanta estima pelo patrono dos impetrantes. A pirâmide é virada ao avesso, a norma fundamental não é mais o fundamento de validade. A seguir esta lógica, o fundamento de validade repousa nos Decretos Judiciários, com os quais a Constituição tem que ser compatível.

De outro modo, somos levados a pensar que o judicial review não mais existe entre nós, a supremacia constitucional seria uma farsa, o que nos traz à memória uma interessante passagem de Raimundo Faoro, autor tantas vezes citado e querido pelos membros do Supremo Tribunal Federal:

A Constituição reduz-se a uma promessa e a um painel decorativo. As leis, os regulamentos, as convenções, só eles a realizariam ou a frustrariam. (…) Constituição, lei, regulamento e atos administrativos são, na elaboração, aplicação e interpretação, os cordéis do domínio da realidade política e social, sem a efetiva ou sequer fingida supremacia da primeira.[6]

Embora se trate de uma análise da Constituição Imperial, mostra-se bem adequada para descrever o sistema erguido pelos que enxergam nos Decretos Judiciários a expressão última do princípio supraconstitucional da segurança jurídica. Neste ponto, passamos à análise do artigo publicado por Almiro do Couto e Silva na Revista Eletrônica de Direito do Estado n° 2, de abril/maio/junho de 2005, que desponta como argumento decisivo para o julgamento de quarta-feira. Uma leitura atenta deste trabalho acadêmico revela a íntima relação que até certo ponto se estabelece entre as suas idéias e a tese dos impetrantes. Nele, é possível identificar as mesmas citações empregadas na sessão do dia 16 de dezembro de 2010 pelo advogado Carlos Velloso. Ali aparecem Hans Kelsen, o RE 79.343 de Leitão de Abreu, o Corpus Iuris Secundum, Linkletter v Walker, o próprio Almiro do Couto e Silva no texto original da década de 70 e Miguel Reale exatamente na mesma ordem da fala do tribuno. Trata-se de menções secundárias que lá estão apenas para indicar o reconhecimento da segurança jurídica como valor constitucional. A questão central é a interpretação desde logo assumida como autêntica do art. 54 da lei 9784/99:

O tema ganhou uma nova dimensão no Brasil com a edição da Lei de Processo Administrativo da União Federal (lei n° 9784, de 29 de janeiro de 1999) – de cuja Comissão elaboradora do anteprojeto, presidida pelo Prof. Caio Tácito, tivemos a honra de participar-, muito particularmente em virtude da inserção em seu texto, no art. 54 , de regra que disciplina a decadência do direito da Administração Pública Federal de anular seus atos administrativos.

Ninguém melhor que o próprio encarregado da redação do projeto que deu origem ao art. 54 da lei n° 9784, de 29 de janeiro de 1999, para elucidar o princípio da confiança no direito público brasileiro. Foi supostamente com base em sua lição que a Ministra Rosa Weber pediu licença para divergir do relator e de toda a jurisprudência do Tribunal. Na ocasião, a revisora quis fazer valer sua compreensão do texto lendo em voz alta os tópicos delineados nas conclusões, que analisados isoladamente de fato sugerem a prevalência do que chamou “princípio maior” da segurança jurídica sobre todos os demais princípios, inclusive o da legalidade. Além disso, acrescentou que estaria convencida da “absoluta boa-fé” dos impetrantes.

A respeito da boa-fé, Almiro do Couto e Silva relaciona-a diretamente com a constitucionalidade do ato:

Questão complexa é a que diz com o conhecimento da ilegalidade do ato administrativo pelo destinatário, ou seu desconhecimento, por grave negligência (infolge grober Fahrlässigkeit), que, no direito alemão, é excludente da aplicação do princípio da proteção à confiança.

Desde logo não se pode esquecer que a proteção da confiança do destinatário, no tocante aos atos administrativos, resulta da presunção de legalidade de que esses atos gozam.

Como apontou o Ministro Gilmar Mendes, desde as últimas emendas promulgadas na ordem constitucional pretérita, a exigência de concurso público para o exercício de atividade notarial e registral figura na Constituição da República:

Art. 207 – As serventias extrajudiciais, respeitada a ressalva prevista no artigo anterior, serão providas na forma da legislação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, observado o critério da nomeação segundo a ordem de classificação obtida em concurso público de provas e títulos.

Além disso, o constituinte excepcionou a exigência de concurso público ao considerar estáveis determinados servidores públicos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dado lembrado pelo Ministro Ayres Britto para demonstrar que o sistema constitucional de 1988 nunca sugeriu a desnecessidade do concurso público para o exercício das atividades notarial e registral.

Se o ordenamento jurídico de fato traduz um conjunto harmônico de regras e princípio, somos forçados a concluir que qualquer modalidade de outorga de delegação sem o prévio concurso público encerra uma hipótese de “flagrante inconstitucionalidade” do Decreto Judiciário. Lembre-se que, na própria justificativa da PEC 471, o deputado João Campos reconhece o caráter provisório da delegação: “São, portanto, decorridos vinte e dois anos. Neste período várias situações quedeveriam ser temporárias, se consolidaram, no aspecto administrativo, sem que tenham amparo legal definitivo” (grifo não é do original).

Nunca se pensou de forma contrária, nunca houve expectativa legítima de permanência indefinida no exercício da função. Se essa expectativa de fato existisse, não teriam desenvolvido a proposta de emenda constitucional 471/2005. Perceberam, no entanto, que uma interpretação distorcida do trabalho acadêmico de Almiro do Couto e Silva poderia ser mais penetrante, sedutora aos magistrados da Suprema Corte e passaram a repetir como um mantra, como uma verdade transcendente o princípio da segurança jurídica, o “princípio maior” da Ministra Rosa Weber. Registre-se que esta proeminência não é reconhecida pelo próprio Almiro do Couto e Silva: “Segurança jurídica e legalidade são, sabidamente, os dois pilares de sustentação do Estado de Direito”.

O jurista gaúcho apresenta, ainda, uma reflexão de caráter metajurídico, que descreve perfeitamente o fenômeno sociológico delineado desde o início deste texto:

Nessa moldura, não será necessário sublinhar que os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança são elementos conservadores inseridos na ordem jurídica, destinados à manutenção do status quo e a evitar que as pessoas sejam surpreendidas por modificações do direito positivo ou na conduta do Estado, mesmo quando manifestadas em atos ilegais, que possa ferir os interesses dos administrados ou frustrar-lhes as expectativas. Colocam-se, assim, em posição de tensão com as tendências que pressionam o Estado a adaptar-se a novas exigências da sociedade, de caráter econômico, social, cultural ou de qualquer outra ordem, ao influxo, por vezes, de avanços tecnológicos ou científicos, como os realizados, com impressionante velocidade, no decorrer do século XX.

Mal empregado, o princípio da segurança jurídica pode ser um poderoso instrumento nas mãos de indivíduos que vivenciem a “crise de adaptação ao mecanismo social” de que falava o autor de Raízes do Brasil. Foi o que sugeriu o Ministro Fux ao lembrar o caso do nepotismo e a edição da súmula vinculante número 13, outra manifestação do tipo primitivo de família patriarcal até há pouco existente em nosso meio. Talvez fosse o caso de seguir a indicação deste magistrado e editar a súmula vinculante 33, consagrando de vez a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da necessidade de concurso público para ingresso nas atividades notarial e registral.

E assim estabeleceria a racionalização dos critérios seletivos em tão importante função estatal, que em pleno século XXI ainda se encontra sob a influência do funcionalismo patrimonial, segundo a famosa classificação weberiana, apontada por Sérgio de Buarque de Holanda:

A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as sua capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático.[7]

Ainda uma passagem de Raízes do Brasil, a mais conhecida, apresenta-se como oportuna para finalizar esta reflexão:

A democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmo privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contras os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos.[8]

 

Fonte: Andecc

 


[1] Holanda, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 141-146.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 28279/DF. Tribunal Pleno. Rel (a): Ministra Ellen Gracie. Data do julgado: 16 dez. 2010. Data da publicação: 29-04-2011. Disponível em: <www.stf.jus.br> Acesso em: 14 out. 2013.

[3] Disponível em: www.camara.gov.br/proposicoesWebprop_mostrarintegra;jsessionid=A9FFB9FBD540961615333BC9BD61EE2D.node2?codteor=349599&filename=PEC+471/2005>.Acesso em: 23  mar. 2014.

[4] COUTO E SILVA, Almiro do. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº 9784/99). Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº2, abril/maio/junho, 2005. Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em 12/05/2008.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 28279/DF. Tribunal Pleno. Rel (a): Ministra Ellen Gracie. Data do julgado: 16 dez. 2010. Data da publicação: 29-04-2011. Disponível em: <www.stf.jus.br> Acesso em: 14 out. 2013.

[6] FAORO, Raimundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. 4. Ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 75-76.

[7] Op. Cit., p. 146.

[8] Op. Cit., p. 160