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Legislação brasileira tem lacunas em caso de família multiparental
Artigo de Ivone Zeger

*Artigo de Ivone Zeger

Daquela vez, o almoço de domingo estava envolto em suspense. O casal espera o filho de 32 anos que trará o neto, de um primeiro casamento, e avisou que levaria a nova namorada. Eles abriram o portão da garagem assim que ouviram o barulho do motor. Carro estacionado, quatro portas se abrem: de uma sai o filho, de outra uma bela jovem e, das portas de trás, pulam o querido neto acompanhado de outro menino, da mesma idade, filho da namorada Em menos de dez minutos, sabe-se que o pai biológico do garoto mora no Alaska e fala com seu filho só a cada seis meses, por telefone. O menino parece adorar o novo pai que ganhou. Então o casal anfitrião do almoço se dá conta: ganhamos mais um neto!

Para a lei, pais socioafetivos são aqueles que convivem e educam, tendo ou não seus nomes no registro da criança. Desde a Constituição de 1988, esse tema da paternidade ganhou nova dimensão com a flexibilização das normas relativas às entidades familiares. O artigo 227 da Constituição Federal, em seu inciso 6, diz que: “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

Por exemplo, um caso clássico envolvendo um pai socioafetivo é aquele no qual o marido ou namorado da mãe “dá seu nome” à criança cujo pai biológico está ausente, ou fugiu ou se negou a reconhecer a criança como sua. Ou seja, o pai socioafetivo assume legalmente o lugar do biológico. Também é um enredo bem conhecido aquele no qual a pessoa cresce, e mesmo tendo um pai socioafetivo procura pelo pai biológico e este decide reparar o erro, “assumir o filho”. As decisões judiciais costumam favorecer o reconhecimento, o que, afinal, parece justo, especialmente quando é o próprio filho quem busca esse reconhecimento.

Foi a partir de situações como essa que começaram a aparecer pedidos inusitados: os de dupla paternidade. Ou seja, pedidos para registro na certidão de nascimento do nome de um pai, sem a exclusão do nome de outro. Ou ainda, mantendo o pai socioafetivo – aquele que primeiro “deu o nome” –, e inserindo o nome do pai biológico, aquele que reconheceu tardiamente seu filho ou filha. Já houve casos em que esse direito foi concedido e a criança passou a receber assistência moral e financeira de dois pais. Parece bom, não é? Porém, essa pessoa é contemplada com mais um sobrenome, com a inclusão até dos nomes dos avós biológicos, mas nada se delibera especificamente sobre o direito à herança. Essa criança poderá herdar bens dos dois pais?

Agora, vamos a outra situação. Pense na sua família ou no seu círculo de amigos. Quantos núcleos familiares você conhece que é formado tradicionalmente por pai, mãe e seus filhos? Ao pensar, talvez você flagre: um irmão que vivenciou duas uniões estáveis; ou uma filha que já lhe deu dois genros; um filho que ao se casar trouxe para a família duas crianças já nascidas, filhas da esposa. Patriarcas e matriarcas da atualidade, se no dia a dia pensarem em seus descendentes apenas como aqueles consanguíneos ou que portam o nome da família, podem incorrer naquele erro básico de “fazer diferença” entre as crianças e jovens da família, na hora de oferecer um mimo ou dar atenção. Afinal, quem chega, não importando que nome carregue, deseja ser aceito como parte integrante.

As transformações na família estão cada vez mais dinâmicas e complexas; tanto que vem se tornando até corriqueiro as situações nas quais crianças e/ou adolescentes acompanham suas mães quando estas se unem a um novo companheiro, que passa, então, a fazer as vezes de pai. Menos usual, mas tão factível quanto, são casos em que a prole acompanha o pai na formação de uma nova família. Em qualquer um dos dois casos, a lei entende haver aí a paternidade – ou maternidade – socioafetivas: são os também chamados padrastos e madrastas, mesmo sem a morte do ex-cônjuge.

É natural que o arcabouço jurídico acompanhe os novos comportamentos. Ocorre que a partir dessa vertente, também passaram a figurar os pedidos de paternidade ou maternidade dupla. Assim, um pai ou mãe assume os filhos do cônjuge como sendo seus, ou porque o pai ou mãe biológicos se mantiveram distantes voluntariamente ou por contingências da vida. No caso citado inicialmente, o pai socioafetivo acabou por requerer a guarda do garoto, para facilitar os trâmites diários e poder incluí-lo no plano de saúde. Ele ainda pretende mover uma ação judicial para inclusão do seu sobrenome e dos avós socioafetivos na certidão de nascimento do menino.

Vale lembrar que essa demanda por oficialização da família multiparental, esse ato de “colocar o sobrenome” do novo pai ou mãe não ocorre apenas a partir da vontade de pais ou mães socioafetivos ou de seus companheiros ou mesmo da criança ou adolescente. Será necessária a ação judicial, realizada por intermédio de advogados, pela qual o juiz ouvirá todos os envolvidos na questão, analisará as justificativas e motivações, e só então arbitrará a favor ou contra o pedido.

Sabe-se que além de afeto, nomes carregam patrimônio. E então, supondo que a dupla paternidade seja concedida, que o pai socioafetivo consiga inserir seu sobrenome na certidão de nascimento do seu novo filho, sem a exclusão do nome do pai biológico que está lá no Alaska: como ficam os direitos sucessórios? Também serão duplos?

Os avós socioafetivos da história relatada têm outros filhos e netos. Passaram dos sessenta anos, têm uma vida bem regrada financeiramente, já tinham feito contas e pelo menos em suas consciências, o trabalho de toda a vida já estava muito bem dividido entre os filhos, o que, como se sabe, também acaba por beneficiar indiretamente os netos. Sequer pressentiam a necessidade de um testamento. Quais preocupações advêm dessa nova situação? A principal preocupação é, no futuro, não haver brigas, não haver quem se sinta injustiçado ou preterido.

Ora, se o nome na certidão do neto socioafetivo inferir em direito de sucessão, esse indivíduo que ganhou a dupla paternidade terá a proteção patrimonial garantida pelos pais biológicos e pelo pai socioafetivo, que, no entanto, tem um filho biológico, que terá de partilhar bens com aquele. Pois é a pergunta que também os avós fazem: o neto biológico não será prejudicado?

A lacuna da lei abre espaço para inseguranças jurídicas. Parece ser este o caso.

Fonte: Consultor Jurídico